Momentos antes de se iniciar o concerto ’50 anos da ‘Tourada’, no Teatro Tivoli, de celebração de uma música que marcou uma época, Fernando Tordo recebeu a FOCUSMSN no seu camarim para algumas perguntas. Um agradecimento muito especial a Fernando Tordo pela disponibilidade, sensibilidade e humildade, características só ao alcance de pessoas de um outro patamar cultural e humano.
FOCUSMSN: 50 anos de ‘Tourada’, foi um tempo que passou rápido, que recordações tem dessa época, muita nostalgia?
Fernando Tordo: Não sinto nostalgia, o tempo que passou depois da ‘Tourada’, em 1973, foram tempos muito melhores para todos nós, com todos os sobressaltos, com coisas que nos agradam, outras que não nos agradam e é com isso que temos vivido até aos dias de hoje. Por vezes classificamos as pessoas injustamente, as coisas nem sempre correram bem, mas somos humanos e como humanos que somos falhamos, temos é que evoluir e aprender com as falhas para sermos cada vez melhores.
Não se pode é exigir coisas das pessoas para as quais ninguém no mundo estava preparado, estou a referir-me à covid, se não fossem as pessoas que estavam a tomar conta do país na altura como seria? Numa situação destas quem é que se oferece para resolver a situação num país que está completamente impreparado, como todos os países estavam, que provocou um esforço gigantesco de toda a gente, mobilizou todos os meios de socorro que tínhamos e que não tínhamos, a começar, por exemplo, pelo pessoal hospitalar.
Estou à vontade para falar disso porque fui apanhado pela covid, estive um mês hospitalizado, muito mal, bem pior que aquilo que eu pensava na altura, só depois é que alguns médicos me disseram que as coisas estiveram mesmo complicadas. Falo disto para fazer um paralelismo, imagina que isto tivesse sido em 1973 sem os recursos que hoje existem.
Ainda assim este nosso percurso, desde a ´Tourada’, foi um tempo cheio de vida, cheio de esperança, de muita confiança mas também por vezes de desapontamentos e sobressaltos, e que devido às ‘guerras’ partidárias têm provocado muita desunião entre os portugueses, devem existir partidos, estamos de acordo, mas não podem coexistir assim.
A pluralidade é própria da liberdade de expressão mas não assim como se comportam, as desavenças, os insultos, não há complementaridade, os políticos cultivam a desunião para usufruir disso e são eles os únicos responsáveis por alguns anos de atraso no nosso país. Em respeito pela liberdade que se faça uma democracia mais séria.
F: Baseado na sua resposta eu pergunto, se o Fernando pudesse voltar atrás e pudesse alterar o curso dos acontecimentos que coisas faria de diferente?
F. T.: É um pouco ‘se eu soubesse o que sei hoje’ (risos), claro que faria coisas diferentes, até porque estaria avisado para o que iria acontecer, muita coisa foi feita à ‘balda’ como se costuma dizer, nomeadamente na protecção aos interesses instalados que ainda hoje se mantêm, nós vemos o estado em que está a nossa justiça, a justiça não só não é cega como tem uma visão de funil, selectiva e não igualitária, não é ampla e o povo apercebe-se disso. Causa revolta e descontentamento.
F: Lutas políticas, discursos e canções interventivas, naquela altura havia contra quem lutar, havia um ideal de mudança e agora?
F. T.: O ideal de mudança mantem-se, estamos há alguns anos a ser governados por um partido que se diz de esquerda por isso temos que exigir mais que aquilo que temos. Não é aceitável que um partido de esquerda faça alianças inconcebíveis com partidos de direita, assim como uma maioria absoluta é totalmente errada num país como o nosso, dá origem a um desmando total, a uma insensatez política e a um absolutismo contrário aos valores democráticos.
Uma maioria absoluta cria uma espécie de ‘desleixo’, de um deixa andar, que veio desaguar na crise que se iniciou há alguns meses, com os mais variados disparates, com as mais variadas acusações, com autenticas fortunas entregues a pessoas que nada fazem e nada produzem.
F:O ‘exame prévio’ deixou passar uma mensagem, na canção ‘Tourada’, cheia de metáforas/indirectas ao regime político em vigor. Porque acha que isso aconteceu, até para a censura do Estado Novo os ventos eram de mudança?
F.T.: Eu tenho na minha ideia que a censura ou o ‘exame prévio’ tenha sequer entrado nesta avaliação, eu acho que essa revisão foi deixada a alguém do topo da hierarquia da própria RTP. Imagino eu, que o tal revisor da estação televisiva até se tenha rido quando leu o poema, deve ter achado ali uma sátira às touradas. Estou convencido que foi isso que se passou, do que propriamente uma reunião de avaliação com todos à mesa para decidirem se davam uma ‘martelada nisto’, (risos) houve um excesso de confiança. Tanto que assim foi que, depois de a canção ter vencido, houve uma corrente dentro da RTP que tentou evitar que a música fosse representar Portugal no Eurofestival.
F: A ‘Tourada’ interpretada pelo Fernando concorre ao Festival RTP da Canção, em 1973, e vence. Estava à espera deste desfecho ou foi uma completa surpresa?
Completamente, não estava nada à espera deste desfecho, até porque neste festival cantei duas músicas, logo aqui divide os votos no artista, embora se dissesse que o que conta são as canções e não o artista mas não é bem assim. O público elege o melhor artista, a melhor voz e, aqueles que entenderam votar em mim tinham duas canções para dividir os votos.
A Tourada venceu com 115 votos, o Paco Bandeira ficou em segundo com 111 e, a minha outra canção, ‘Carta de Longe’, também um poema de Ary dos Santos, teve 23 votos, o que mostra a força da mensagem, relembrar que nesta altura a votação era feita por um júri sediado em todas as capitais de distrito que recolhia os votos dos residentes, através do telefone e apresentava o resultado.
F: Que ideia terá passado pela cabeça do Ary dos Santos arriscar a fazer um poema deste teor e apresenta-lo a um festival?
F. T.: Nós trabalhámos sempre assim, eu fazia a música e ele colocava a letra, quando eu lhe cantei a melodia ele perguntou-me o que me fazia lembrar e eu disse-lhe, ‘uma tourada e que tivesse um poema satírico’, mas não estava a pensar objectivamente num resultado final, e ele disse-me ‘que não percebia nada de touradas’.
Como eu sei o vocabulário, o léxico do espectáculo, dei-lhe os tópicos de vários elementos, sol, sombra, camarote, barreiras, etc., e assim foi. O Ary olhou para os tópicos e começou a escrever ‘Não importa sol ou sombra / camarotes ou barreiras / toureamos ombro a ombro as feras’, começou a acender-se a luz da sátira, a partir daqui a letra foi sempre evoluindo noutro sentido, não havia já como faze-la de outra forma, indo terminar no ‘E diz o inteligente que acabaram as canções’.
F: Pelo meio ‘Estamos na Praça da Primavera’ há algum paralelismo com a Primavera Marcelista?
F. T.: Não, não teve nada a ver com isso, até porque logo em seguida vem ‘e vamos pegar o mundo pelos cornos da desgraça’, foi uma coincidência que teve por parte de alguns críticos uma outra interpretação mas que, dentro do contexto do poema, pode facilmente ser associada ao acontecimento Marcelista.
F: Hoje o Fernando celebra 50 anos da ‘Tourada’, mas não só, são mais de 50 anos dedicados à música, é a celebração de uma carreira, de um cantor de intervenção e da música popular portuguesa, que conquistou para sempre um espaço na história da nossa cultura. O que espera do concerto, que se irá iniciar dentro de duas horas?
F.T.: Eu espero que seja uma festa, penso que vai estar muita gente, a presença dos convidados em palco vai ser muito importante para o público e vem dar outra força à celebração, vem o Ricardo Ribeiro e o Jorge Palma e, no final, o Paulo de Carvalho, um querido amigo, que vem abrilhantar e completar um concerto que espero que seja do agrado de todos, estará também presente o senhor presidente da república que dará uma força simbólica ao evento que estamos a celebrar, que mais não é que a liberdade e a democracia.
Portanto, espero que o público entenda o concerto como uma grande festa e dizer também, porque é a verdade, que cada presença, cada pessoa que estiver aqui, no fundo, está a dar um abraço, a mim, ao Pedro Osório e ao Ary dos Santos que já não estão entre nós. Gostaria que este concerto fosse o concerto dos abraços.